COINCIDÊNCIAS EXAGERADAS - CAPÍTULO 01
- Paulo L. Menezes da Silveira
- 15 de dez. de 2015
- 4 min de leitura

“Eu não conheço tudo o que existe no mundo, mas o invento enquanto espero.”
(MENINA DE 11 ANOS)
REVELAÇÃO
Olhei-me no espelho e vi, refletidas, todas as minhas maldades. Debatia-me num desgosto intransponível. Meu sorriso... Distorcido e cruel. Meus cabelos e barba, desgrenhados e selvagens. Não resisti à excitação e mordi meu lábio inferior. Primeiro suave. Depois, fui aumentando a pressão, até que uma grossa gota de sangue brotou, desceu pelo queixo e esparramou-se pelo branco da camisa, formando um desenho surreal. Minhas pupilas dilataram-se. Passei a mão esquerda pelo sangue que escorria e esfreguei no espelho. Uma intensa onda de prazer percorreu-me o corpo, provocando um arrepio que me intumesceu os membros. Num acesso de fúria rasguei a camisa. Com a mão direita soquei com força o espelho, que se estilhaçou em muitos pedaços.
Saí pela janela do quarto, ignorando a altura de quatro andares, desci pelos galhos da árvore próxima a janela. Urrei, rangendo os dentes. Tencionei todos os músculos e corri.
A noite fria recebeu-me sem queixas. O som abafado de meus pés descalços perpassou a escuridão noturna.
Uma energia sobrenatural envolveu-me e me movi mais rápido. Ultrapassei os que passeavam na noite e muitos nem perceberam minha presença, na velocidade de meus movimentos. Corri até os limites da cidade e adentrei a mata. Meus instintos pareciam querer levar-me a um lugar específico: as entranhas da floresta, onde havia um forte clamor por uma noite eterna, imóvel, obstinada, inevitável e modesta; algo inatingível e oculto, negando a definir-se de modo concreto ou de modo abstrato. Que sempre surpreende.
Adensou-se a vegetação. Os espinhos sulcavam-me a carne. Pedras e tocos cortavam meus pés. Minha calça foi rasgando-se com o atrito e esfiapou-se por completo, segundos antes de minhas forças abandonarem meu corpo. Fisicamente exausto, reassumi o controle das percepções. Estava em uma clareira. Pálida, a fosforescência da lua permitiu-me uma visão detalhada do lugar. Entendi ser o lugar onde eu estivera em épocas passadas, de uma existência conturbada e despida.
Ouvi rosnados. Ferozes. Como os de cães selvagens.
Gritei... −, e desta vez era pavor. Chorei o restante da noite. Senti medo, fome e frio.
Ao amanhecer retomei o caminho de volta. Não havia equívoco, eram meus os gritos de socorro que ouvia. Envergonhei-me por ser tão covarde. Justo eu que sempre fora tão admirado pela coragem e bravura, agora, assemelhava-me a um moleque assustado, e, por agravante, perdido em um ambiente com o qual não restava mais familiarização.
Notei, depois de algum tempo, que estava andando em círculos. Meus músculos e ferimentos doíam. Meus pés, descalços e frios, sangravam. Minha memória acusava-me de esquecimento. Certifiquei-me de que estava nu. Isto, me apavorou ainda mais.
Caí de joelhos. Detive-me, olhando minhas mãos trêmulas e sujas de sangue e lama. Meus olhos giraram nas órbitas. O ar entalou-me na garganta. Perdi os sentidos. Mergulhei num torpor estranho de sonhos obscuros, inibidores... Carregados de metáforas desgastadas, de extremo mau gosto.
Num ato de insânia qualquer, revi antigos e insolúveis enigmas: tentava substituir um Universo caótico e misterioso por outro, certinho, cheio de respostas. Revisitei cenários há muito conhecidos. Isolados em uma única autotranscendência. Num âmbito que prioriza e ultrapassa o alargamento da consciência. Tanto na totalidade do ser quanto em seu oposto.
Percebia a sutileza das cores e comprimentos de onda. Sentia os movimentos da energia e das emoções, em muitas escalas.
Às vezes não sabemos o quanto estamos nos sentindo mal até que esta sensação desapareça.
Despertei num dia qualquer. Ventava na solidão de minha alma. Alguém sorriu... Alguém chorou. O mundo estava pronto e as pessoas eram incompletas. O mal já era pleno, apenas mudara de nome.
As falhas corrigidas. Os pecados dos quais me arrependi. Os erros que não repito... Por que essa neurose toda não fica enterrada? Por qual razão tudo isso sempre volta, se esgueirando pelas bordas dos meus pensamentos? “O que é teu sempre volta para ti. O que tomas, sempre lhe será tomado”.
Sem aviso, estabeleceu-se o equilíbrio. Cada coisa em seu lugar, até mesmo no mundo das idéias. O mundo físico: difícil, tenebroso e de abismos inatingíveis, montanhas intransponíveis, rios, lagos, mares e oceanos, florestas... Oferecendo de tudo, principalmente perigos, (este) figurou-se apenas uma esfera de nutrientes: orgânicos, naturais e minerais. Alinhados todos os outros planetas e as demais constelações − que dão forma e compõem o universo −, vi tudo isso e todas as galáxias e as realidades paralelas que se entrecruzam no multiverso...
Permeei o mundo espiritual e procurei por meus ancestrais. Foi fácil encontrá-los, vieram a mim. Houve comunicação entre nós e não experimentamos necessidade de palavras nem de contato físico. Os vi como eram em vida, porém, transformados. A simples presença deles ao meu redor possibilitou-me conhecê-los em particular e chamá-los pelos nomes... Se houvesse importância em nomes. Fiquei em silêncio. Que era desnecessário falar. Não nos tocamos. Não sentíamos vontade de fazê-lo. Essa identificação estava sintetizada em uma surpreendente semelhança. Entendi que sempre estivéramos o mais próximo possível, nos três principais mundos: o Físico, o Espiritual e o Mundo das Idéias... Distraio-me, então, com a dança dos fantasmas. Não estou preparado para o que preciso, nem para o que quero ver.
Brusco, em minha frente, um muro se estende e cresce, separando-nos. Gigantesco! Tijolos alaranjados modelam-se em um bem construído obstáculo... Sem nenhuma passagem provável... O limite imposto dilacera a sensação de equilíbrio... Acrescendo a perturbação de um estado de espírito... Abismado.
Eu me lembro... Era noite... Sempre era noite quando eles voltavam. Emergiam do assoalho. Saltavam das paredes. Murmuravam expressões de desespero e autodestruição. Invadiam minha mente com idéias macabras, despertavam em minha alma... A “Herança das Trevas”.
Eles me encontraram. Estou fraco! Já não sei fugir! Tenho raízes! Aprendi a amar! Eles se valem disso e me torturam.
Quero chorar, mas não existem lágrimas! Meus olhos secaram! Meu grito calou-se! Meus anjos fugiram!
Num fluxo desenfreado, meus temores afloram. Ressurgem meus demônios... Há muito escondidos.
( Varekai )
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